2008-12-25

Autoctonia

Em 1955, Heidegger fora convidado a produzir um pequeno discurso de homenagem ao seu patrício, o compositor, Conradin Kreutzer (1780 – 1849). Neste discurso, publicado na primeira parte da sua obra Gelassenheit (Serenidade, na versão portuguesa), o filósofo sublinha a importância das raízes na produção de uma obra genuína. É um elogio da «autoctonia». A tese está já presente, com a máxima clareza de exposição, em A Origem da Obra de Arte (Der Ursprung des Kunstwerkes), o ensaio heideggeriano sobre estética que resultou de conferências que o filósofo de Messkirch proferiu nos anos de 1935-36. O elogio do discurso parece dirigir-se a essa questão. Não é a menor, de facto. Só que o pensamento reflexivo (meditativo) que o filósofo reclama nesse mesmo momento, aponta, acima de tudo, à essência da questão do século XX: a tirania do pensamento calculante e o seu derivado prático, a técnica. E que perigo vem daí? O filósofo responde:


«O desenvolvimento da técnica efectuar-se-á cada vez com mais velocidade e não poderá ser detido em parte alguma.(…) Os poderes que em todo o lado e a todas as horas desafiam, encadeiam, arrastam e acossam o homem sobre qualquer forma de utensílio ou instalação técnica, estes poderes, há muito que transbordaram a vontade e a capacidade de decisão humanas, porque não foram feitos pelo homem.(…) O sentido do mundo técnico oculta-se.(…) Por isso há que manter desperto o pensar reflexivo

Sobre a obra de Kreutzer, (o compositor de Messkirch que nada tem a ver com a excelente sonata de Beethoven, obviamente), não haveria muito a dizer. Compreende-se que Heidegger tenha preferido aprofundar à procura do sentido do futuro que, como reclama da citação de Hebel, está ligado à terra: «Somos plantas – gostemos ou não de admiti-lo – que devem sair com as raízes da terra para poder florescer no éter e dar fruto».


Estavam ainda quentes as brasas da guerra sobre o solo alemão. E já o êxodo da humanidade se antevia, embalado nos braços da técnica global. O pensamento reflexivo propõe o regresso. Queiram todas as divindades que não seja demasiado tarde!


Para ilustrar a música de Kreutzer escolhi este tempo di minuetto do pouquíssimo disponível no youtube. O critério é tão inconfessável que o reservo só para mim.

2008-07-07

Celebração

A 7 de Julho, há 148 anos, Gustav Mahler (1860 – 1911) percorre a distância do possível ao fáctico e aporta pleno neste mundo sombrio. Mundo agreste e difícil no seu tempo. Não parece ter melhorado muito. Pior seria sem Mahler.
Em 1902, prestes a unir-se a Alma, prestes a terminar a 5ª Sinfonia, compõe este intenso Adagietto. Tanto da alma….tanto do ser….!

Celebremos!


E quem melhor do que Bernstein para celebração tão solene?




2008-07-06

Die zwei blauen Augen

Os dois olhos azuis da minha amada” perdidos para sempre no início da longa e dura viagem. Intensamente reencontrados no luto, à sombra da tília do caminho. No repouso retemperador que proporciona.

«É o luto que desvenda uma dada perda como a perda de alguma coisa que nos preocupa profundamente e de um modo único e como algo que é irrecuperável no seu próprio ser. (…) O luto implica um encontro intensificado com aquilo que é perdido e a nossa relação para com tal coisa, de tal maneira que a sua ausência torna-se um tipo de presença» (Bruce V. Foltz; Habitar a Terra).

Em 1884, o jovem Mahler apaixonado perdera Johanna. Para sempre. É no luto da viagem que a reencontra e se reencontra:

Na estrada há uma tília,
Aí pela primeira vez descansei dormindo!
Debaixo da tília!
As suas flores caíram sobre mim como neve
Não sei como a vida faz.
Então ficou tudo, tudo bem outra vez!
Ah! Tudo bem outra vez
!”

Die zwei blauen Augen
Die zwei blauen Augen von meinem Schatz,
Die haben mich in die weite Welt geschickt.
Da musst ich Abschied nehmen
Vom allerliebsten Platz !
O Augen, blau !
Warum habt ihr mich angeblickt ?
Nun hab ich ewig Leid und Grämen !


Ich bin ausgegangen in stiller Nacht,
In stiller Nacht wohl über die dunke Heide.
Hat mir niemand Ade gesagt,
Ade, ade !
Mein Gesell war Lieb und Liede !


Auf der Straß steht ein Lindenbaum,
Da hab ich zum ersten Mal im Schlaf geruht !
Unter dem Lindenbaum,
Der hat seine Blüten über mich geschneit,
Da wusst ich nicht, wie das Leben tut,
War alles, alles wieder gut !
Alles ! Alles !
Lieb und Leid !
Und Welt und Traum !


Lieder Eines Fahrenden Gesellen - Lied No. 04: Die zwei blauen Augen von meinem Schatz

2008-07-05

Canção do Lamento


Nesta peça de concurso Gustav Mahler (1860 – 1911) descobre-se. Tem então 21 anos e procura afincadamente a sua voz. Os especialistas vêem aqui, sobretudo no início desta primeira parte (depois segunda, uma vez que a primeira, Wäldemärchen, foi retirada pelo próprio compositor por considerá-la redundante) e no final, o fundamental do Mahler histórico.
O compositor que alguns consideram como elemento chave do modernismo inicial, foi apanhado no fogo cruzado de uma guerra que só colateralmente lhe dizia respeito. Entre Wagner e Brahms, o jovem compositor tentava afirmar-se. Vítima do contexto vienense da época, como muito bem o nosso amigo Milton Ribeiro, do PQPBach, essa fantástica "enciclopédia da cena musical erudita" (e em português!!), aqui coloca, Mahler é preterido, em função dos factos estéticos do momento, mas inicia deste modo, com Das Klagende Lied, um percurso genial. Felizmente para as gerações vindouras, herdeiros e fruidores do seu brilhantismo, uma pequena contrariedade em nada diminuiu a vontade do músico. Hoje seria diferente?




2008-07-03

Oh, Luz Originária!

De Gustav Mahler (1860 – 1911) muito se disse e muito mais se escreveu. Há quem considere difícil. Há quem considere fundamental. Há quem ouça. Quem ouça sempre. Quem só ouça. Mahler nunca é demais.

Não há história humana como a aberta pela música de Mahler. Parece que em cada compasso há um marco do regresso a si da humanidade.
Urlicht”, da fantástica Sinfonia nº 2, é um daqueles momentos em que o Homem se vê a regressar a si e se enche desta luz “divina” originária. Divindade tão humana na recusa da vontade: Luz da liberdade definitiva e essencial. “Oh, Rosa Vermelha”, que és sem porquê!

Esta interpretação pode até nem ser tecnicamente a mais conseguida. Tem, no entanto, o valor da própria história da música: o inqualificável Glenn Gould a dirigir a poderosa Maureen Forrester.
Aqui e aqui ficam os links para a extraordinária interpretação de Anne Sofie von Otter, supremamente conduzida por Simon Rattle, e para a substancial interpretação de Thomas Hampson que, no seu contexto, me agrada bastante.

Não há motivo suficientemente significativo para celebrar Mahler senão aquele em que ele é dado a ouvir. E isto é sempre!

2008-06-28

Regresso (???) ....e descoberta


Francesco Antonio Bonporti (1672 - 1749)

Coloca-se a hipótese de ter sido Arcangelo Corelli a contribuir decisivamente para a paixão pelo violino deste humanista filósofo «amador de música», como gostava de se dizer. Para mim, que invisto parte interessante das minhas emoções nesta idílica idade do ouro do Barocco, foi uma gratíssima descoberta. Entre a vocação de "Il Prete Rosso" e a devoção do verdadeiro «patriarca» do barroco que foi J.S. Bach, este igualmente "homem da Igreja" de Trento e Pádua quase passava em silêncio pela história da música. Não fosse a 'transcrição' de parte da sua Invenzione Decima in E, levada a cabo pelo grande Johann Sebastian e talvez não fosse possível fruir desta espantosa arte da harmonia e da muito cativante e viva arte da melodia. O hábito, pelos vistos usual à época, do apossamento de obras de outros autores (sem pagar direitos) retribui, afinal, em grandes benefícios. Outros tempos!!

Bonporti, agora descoberto graças a Bach, merece ser ouvido com o coração. Infelizmente no Youtube apenas esta Sonata a Tre nº 8 o apresenta e representa. Mas dele há muito mais e melhor para ouvir. Por exemplo as Invenzioni a Violino Solo op.X. Muito bom!



2008-03-27

Alma

"...Rapo da navalha, e vá de tirar forra! Pois querem saber? O sujeito que eu tinha em cima de mim era o meu compadre!...Oito anos de cadeia!...Não está certo!...Então alguém é capaz de acreditar que eu ia matar o meu compadre se soubesse que era ele?...

- O João Rodrigo foi buscar-lhes vinho e comida. Depois de fartos, cantando pareciam outros. A impressão deixada pela narrativa daquelas mortes passou-nos. No escuro das grades, a cantiga abria-se pura e melodiosa. Breve juntámos as nossas vozes às deles. Deixou de haver ali criminosos e não criminosos. Apenas homens que erguiam para a noite uma canção de amor."

Manuel da Fonseca; À Lareira, nos Fundos da Casa onde o Retorta tem o Café.

2008-03-01

'Orage'

Há momentos de tormenta na vida de cada um. Há vidas atormentadas e, a essas, só por ironia chamaremos vidas. Há sempre quem transforme em vida as tormentas de cada dia. Algumas tormentas metafísicas, fundamentais, sem rosto e sem corpo. Essas deixa-as viver a música genial. E sublima-as. Soube-o bem Liszt, pássaro sombrio que se moveu no mundo atrás de alvíssimas mãos, para toda a graça de todas as nossas desgraças. Alfred Brendel, mestre impressionante do feliz decalque artístico, diz Liszt no meio da tormenta, como só os génios o sabem dizer. Repousemos! Retomemos a paz dos dias, pela graça deste bendito Brendel!


2008-02-07

Colhe o dia, porque és ele

Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem: outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Por que tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos.
Colhe o dia, porque és ele.
Ricardo Reis