2011-10-05

Revueltas

Silvestre Revueltas (31 de Dezembro de 1899 – 5 de Outubro de 1940) foi, muito provavelmente, o último filho ilustre do século XIX. Nascido no México em pleno Porfiriato, Silvestre traz no nome o destino dos mexicanos e no sangue uma herança de muitos séculos de dor e esperança cosida com a dignidade de um povo, sistematicamente calcado sob os cascos da desvairada ganância europeia e da vizinhança Yankee.

Da família Revueltas ficou uma paixão notável pela arte pluriforme, com dignos representantes nas suas várias gerações. Silvestre revelou-se cedo como um homem de espírito inquieto e solidário. Absorveu intensamente a luz do novo século e penetrou-o com a energia alimentada na histórica herança de opressão e luta pela liberdade. Combate, com as armas das musas, pela afirmação da sua herança nos anais da história universal e pela humanidade que procura, nos alvores do século XX, perseguir os mais elevados ideais humanos. Esse novo século aspira a realizar plenamente os ideais luminosos anunciados séculos e séculos a fio. Mas….ai, a dor!!

As sombras que nesses tempos cobriam a Europa e o mundo, reagindo ao passo afoito da razão, chamam Silvestre a Espanha. Ao lado dos republicanos esperançosos combate a ameaça tirânica de séculos, estandarte oculto do caudilho que marcha com as botas sujas de sangue sobre o solo da Ibéria.

Consumada a derrota, a sementeira de horror que não mata os ideais mas angustia os espíritos dos jovens paladinos, abate-se sobre Silvestre. A mão que combate a desordem compõe a harmonia e busca a perfeição. Pouco sabemos do combate do corpo, muito nos ficou do sopro atormentado e inspirado: da música e do epílogo trágico do jovem subjugado sob o peso da derrota dos ideais fundamentais. Sabemos também das etílicas viagens que, precocemente, o encaminharam para o fim. Sabemos ainda que os melhores são os que mais alimentam os ideais supremos da razão e que pagam essa audácia com um chamamento a destempo. Os deuses saberão porquê!

De Silvestre Revueltas soa a música eterna que, como o condor do velho mundo, anuncia bem alto que quem alto voa perdura no olhar e na memória, e preserva do esquecimento o que não pode ser esquecido.

2011-09-18

Kagel, o "neodadaísta"

Maurício Kagel (1931 - 2008), músico e director de orquestra argentino, porteño, descendente de imigrantes russos, estudou música e filosofia na terra natal mas partiu para a Alemanha (Köln), em 1957, para ensinar. Aí permaneceu até à sua morte, precisamente no dia 18 de setembro de 2008. Há 3 anos, portanto. Culto e inquieto, movimentou-se à vontade no panorama das artes do século XX e na Filosofia. Da sua formação e atitude resultou a síntese que fez do dele um nome incontornável dos movimentos artísticos do século das revoluções. Dito pós-serialista, neodadaísta, etc., Kagel foi sobretudo um espírito eclético vivo que se tornou referência na coreografia musical, na composição, nas artes da Europa, em geral. Personagem riquíssima é digno de ser reconhecido e recordado. Aqui fica um trecho significativo do seu «Ludwig van» de 1969, obra que revela a sua incursão também pela sétima arte, criada no espírito da comemoração do bicentenário do nascimento de Ludwig van Beethoven (1770 - 1827).


2011-09-09

"Amor ti vieta"

Umberto Giordano (1867 - 1948) compôs a ópera "Fedora" com libreto retirado de uma daquelas "estranhas" peças teatrais do final do século XIX. A fantasia do seu autor, Victorien Sardou, devoto confesso da grande Sarah Bernhardt (1844 - 1923), dá substância e permite compreender o alcance e o êxito da emergente teoria psicanalítica de Freud. É vasto o universo de textos desta índole que mergulham, pouco fundo, no romantismo tardio e decadente da Rússia Imperial
Salvaguardada a distância sobre a especificidade marcada do texto há, no plano do drama musical, pedaços fantásticos de sensibilidade e bom gosto. Procurou-se fixar aqui um desses trechos em três momentos que são, por si só, exemplos de três das mais marcantes vozes do século XX. Fruamos nesta multíplice homenagem!

«Amor ti vieta di non amar.

La man tua lieve, che mi respinge,

cerca la stretta della mia man

La tua pupilla esprime: "l’amo"

se il labbro dice: "Non t’amerò"»






2011-09-04

Regresso... surpreendido.

Estive longe do Broto algum tempo. Muito tempo. Pensei que não voltaria a esta vereda. Surpreendeu-me verificar como se alargou e preenche (estatisticamente) meio mundo. Tentarei continuar a contemplar os astros e a romper as neblinas seguindo este duro chão tão pisado por gente "estranha". Tentarei!

Lembrei-me de uma passagem muito interessante que cito quase de cor, do Orlando de Virginia Woolf, talvez à laia de justificação. Diz ela a páginas tantas:

«Não há no peito do homem paixão mais forte do que o desejo de levar os outros a crer no que ele crê. Nada tem tamanho poder de cortar pela raiz a sua felicidade e de o enraivecer, que a noção de que os outros têm em baixa conta o que ele mais preza.»

Os bons e os maus momentos são sempre oportunidades para estabelecer o bom caminho. Nem que seja o regresso ao chão já calcado.


2008-12-25

Autoctonia

Em 1955, Heidegger fora convidado a produzir um pequeno discurso de homenagem ao seu patrício, o compositor, Conradin Kreutzer (1780 – 1849). Neste discurso, publicado na primeira parte da sua obra Gelassenheit (Serenidade, na versão portuguesa), o filósofo sublinha a importância das raízes na produção de uma obra genuína. É um elogio da «autoctonia». A tese está já presente, com a máxima clareza de exposição, em A Origem da Obra de Arte (Der Ursprung des Kunstwerkes), o ensaio heideggeriano sobre estética que resultou de conferências que o filósofo de Messkirch proferiu nos anos de 1935-36. O elogio do discurso parece dirigir-se a essa questão. Não é a menor, de facto. Só que o pensamento reflexivo (meditativo) que o filósofo reclama nesse mesmo momento, aponta, acima de tudo, à essência da questão do século XX: a tirania do pensamento calculante e o seu derivado prático, a técnica. E que perigo vem daí? O filósofo responde:


«O desenvolvimento da técnica efectuar-se-á cada vez com mais velocidade e não poderá ser detido em parte alguma.(…) Os poderes que em todo o lado e a todas as horas desafiam, encadeiam, arrastam e acossam o homem sobre qualquer forma de utensílio ou instalação técnica, estes poderes, há muito que transbordaram a vontade e a capacidade de decisão humanas, porque não foram feitos pelo homem.(…) O sentido do mundo técnico oculta-se.(…) Por isso há que manter desperto o pensar reflexivo

Sobre a obra de Kreutzer, (o compositor de Messkirch que nada tem a ver com a excelente sonata de Beethoven, obviamente), não haveria muito a dizer. Compreende-se que Heidegger tenha preferido aprofundar à procura do sentido do futuro que, como reclama da citação de Hebel, está ligado à terra: «Somos plantas – gostemos ou não de admiti-lo – que devem sair com as raízes da terra para poder florescer no éter e dar fruto».


Estavam ainda quentes as brasas da guerra sobre o solo alemão. E já o êxodo da humanidade se antevia, embalado nos braços da técnica global. O pensamento reflexivo propõe o regresso. Queiram todas as divindades que não seja demasiado tarde!


Para ilustrar a música de Kreutzer escolhi este tempo di minuetto do pouquíssimo disponível no youtube. O critério é tão inconfessável que o reservo só para mim.

2008-07-07

Celebração

A 7 de Julho, há 148 anos, Gustav Mahler (1860 – 1911) percorre a distância do possível ao fáctico e aporta pleno neste mundo sombrio. Mundo agreste e difícil no seu tempo. Não parece ter melhorado muito. Pior seria sem Mahler.
Em 1902, prestes a unir-se a Alma, prestes a terminar a 5ª Sinfonia, compõe este intenso Adagietto. Tanto da alma….tanto do ser….!

Celebremos!


E quem melhor do que Bernstein para celebração tão solene?




2008-07-06

Die zwei blauen Augen

Os dois olhos azuis da minha amada” perdidos para sempre no início da longa e dura viagem. Intensamente reencontrados no luto, à sombra da tília do caminho. No repouso retemperador que proporciona.

«É o luto que desvenda uma dada perda como a perda de alguma coisa que nos preocupa profundamente e de um modo único e como algo que é irrecuperável no seu próprio ser. (…) O luto implica um encontro intensificado com aquilo que é perdido e a nossa relação para com tal coisa, de tal maneira que a sua ausência torna-se um tipo de presença» (Bruce V. Foltz; Habitar a Terra).

Em 1884, o jovem Mahler apaixonado perdera Johanna. Para sempre. É no luto da viagem que a reencontra e se reencontra:

Na estrada há uma tília,
Aí pela primeira vez descansei dormindo!
Debaixo da tília!
As suas flores caíram sobre mim como neve
Não sei como a vida faz.
Então ficou tudo, tudo bem outra vez!
Ah! Tudo bem outra vez
!”

Die zwei blauen Augen
Die zwei blauen Augen von meinem Schatz,
Die haben mich in die weite Welt geschickt.
Da musst ich Abschied nehmen
Vom allerliebsten Platz !
O Augen, blau !
Warum habt ihr mich angeblickt ?
Nun hab ich ewig Leid und Grämen !


Ich bin ausgegangen in stiller Nacht,
In stiller Nacht wohl über die dunke Heide.
Hat mir niemand Ade gesagt,
Ade, ade !
Mein Gesell war Lieb und Liede !


Auf der Straß steht ein Lindenbaum,
Da hab ich zum ersten Mal im Schlaf geruht !
Unter dem Lindenbaum,
Der hat seine Blüten über mich geschneit,
Da wusst ich nicht, wie das Leben tut,
War alles, alles wieder gut !
Alles ! Alles !
Lieb und Leid !
Und Welt und Traum !


Lieder Eines Fahrenden Gesellen - Lied No. 04: Die zwei blauen Augen von meinem Schatz