2007-12-22

Obra-prima

«A obra-prima é uma sinfonia tocada nos nossos melhores sentimentos. Ao toque mágico do belo as cordas mágicas do nosso ser despertam, vibramos e alegramo-nos em resposta à sua chamada. A mente fala à mente. Escutamos o que não foi dito, fitamos o que não foi visto. (…) Memórias há muito esquecidas regressam a nós com novo significado. Esperanças sufocadas pelo medo, desejos que não ousamos reconhecer, avançam em nova glória. A nossa mente é a tela onde os artistas colocam a sua cor; os seus pigmentos são as nossas emoções; o seu «chiaroscuro» a luz da alegria, a sombra da tristeza. A obra-prima é de nós próprios tal como nós somos da obra-prima.
(…)
Para compreender uma obra-prima tendes de rebaixar-vos perante ela e aguardar com respiração contida a menor das suas elocuções

Kakuzo Okakura; O Livro do Chá




«Coro:

Muchas cosas hay portentosas, pero ninguna tan portentosa como el hombre; él, que ayudado por el noto tempestuoso llega hasta el otro extreme de la espumosa mar, atravesándola a pesar de las olas que rugen, descomunales; él que fatiga la sublimísima divina tierra, inconsumible, inagotable, con el ir y venir del arado, año tras año, recorriéndola con sus mulas.`Con sus trampas captura a la tribu de los pájaros incapaces de pensar y al pueblo de los animales salvajes y a los peces que viven en el mar, en las mallas de sus trenzadas redes, el ingenioso hombre que con su ingenio domina al salvaje animal montaraz; capaz de uncir con un yugo que su cuello por ambos lados sujete al caballo de poblada crin y al toro también infatigable de la sierra; y la palabra por si mismo ha aprendido y el pensamiento, rápido como el viento, y el carácter que regula la vida en sociedad, y a huir de la intemperie desapacible bajo los dardos de la nieve y de la lluvia: recursos tiene para todo, y, sin recursos, en nada se aventura hacia el futuro; solo la muerte no ha conseguido evitar, pero si se ha agenciado formas de eludir las enfermedades inevitables. Referente a la sabia inventiva, ha logrado conocimientos técnicos más allá de lo esperable y a veces los encamina hacia el mal, otras veces hacia el bien. Si cumple los usos locales y la justicia por divinos juramentos confirmada, a la cima llega de la ciudadanía; si, atrevido, del crimen hace su compañía, sin ciudad queda: ni se siente en mi mesa ni tenga pensamientos iguales a los míos, quien tal haga.»
Sófocles; Antígona

2007-12-21

Ne me quitte pas!...

(...) E é preciso humedecer os lábios com pérolas de chuva vindas de terras onde não chove. Só o que é belo, verdadeiramente belo, permanece.

2007-12-15

Dissoluto Absolvido

"Don Giovanni:
- Espanha, Turquia, França, Alemanha, Itália, tudo somado dá duas mil e sessenta e cinco mulheres...Quem delas terá sido a primeira? Como se chamava? Seria das louras? Seria das morenas? Era alta? Ou era baixa? Não consigo recordar-me. Depois de ter duas mil e sessenta e cinco mulheres deitadas, quem seria capaz de se lembrar da primeira? Tantas, tão poucas, demasiadas. Como poderá saber-se? A orgulhosa Dona Ana teria neste livro o número dois mil e sessenta e seis, a ingénua Zerlina seria a dois mil e sessenta e sete mas as ingratas não me deram tempo, resistiram, gritaram por socorro, obrigaram-me a fugir, a dar confusas e ridículas explicações. Antigamente era mais rápido na conquista, mais veloz no triunfo, mais conclusivo na retirada. E ainda por cima tive de matar o idiota do comendador. Don Giovanni está a fazer-se velho.
(Batem à porta com violência)
Don Giovanni:
- Quem chama? Leporello! Leporello! Onde te meteste tu alma condenada? Vai ver quem está a bater à porta! (...) Ah, tinha-me esquecido de que o mandei às compras... (Batem de novo com mais força) (...) Quem será o grosseiro, o estúpido, o mal-educado? (Agarra num bastão e vai abrir.) Espera aí que já te ensino!
Comendador (entrando):
- Aqui estou.
Don Giovanni:
- Isso vejo eu, mas custa-me a crer ser verdade o que os meus olhos mostram. Uma estátua andante é um prodígio que nunca mais se repetiu desde que o homem foi feito de barro."
José Saramago; Don Giovanni ou O dissoluto absolvido.

Tanta homenagem! Tantos fantasmas!
Mozart, Saramago, Freud, Levine, 'Don Giovanni', 'Dona Elvira', Comendadores.... Nunca mais acabam os nomes, as referências, as metáforas. Uma torrente esmagadora. E o que terá tudo isto a ver com os homens? (Pausa para respirar...fundo...e segurar no peito o coração...com ambas as mãos.)

2007-12-10

Charles-Marie Widor (1844-1937)

Charles-Marie Widor (1844 – 1937) nasceu em Lyon, França, no seio de uma família com tradição na construção de órgãos de igreja. Um amigo da família, Aristide Cavaillé-Coll, nome célebre da construção destes instrumentos, descobriu o talento do jovem Charles-Marie e impulsionou a sua formação. Não foi tempo perdido. Com 26 anos, Widor sucede ‘provisoriamente durante 64 anos’ a Lefébrue-Wely, como organista da L'église Saint-Sulpice de Paris (célebre, hoje em dia, por via do celebérrimo romance de Dan Brown), local onde fora instalado um fabuloso órgão Cavaillé-Coll. Aí desenvolve o talento de uma vida rica e circunspecta. A sacralidade que respira a música para órgão é a expressão adequada à vida e à personalidade deste francês de carácter aparentemente fechado.
Widor substitui, mais tarde, César Franck, no Conservatoire de Paris, como responsável pelo ensino do instrumento de eleição. Revela aí aos seus discípulos, entre os quais o desafortunado Jehan Alain, a força espantosa da sua arte musical. Com ele aprenderão ainda hoje todos os que quiserem seguir a via da música. Já ouvi esta ideia a grandes músicos de Jazz, por exemplo. Para Widor a ‘improvisação’ não seria uma questão de talento mas uma contínua aprendizagem que exige tanto trabalho como a simples execução.
O compositor francês ficou célebre pelos seus trabalhos para órgão. A minúcia e o rigor são os traços determinantes. Tal como o foram do seu ensino. A obra, no entanto, estende-se por todas as áreas da composição, do piano à voz e até mesmo ao teatro musical.
Também eram célebres no seu tempo os acompanhamentos musicais das missas-recital de Saint-Suplice. Em Paris, estas missas eram procuradas pelas pessoas mais cultas como expressão do bom gosto. Improvisação, bom gosto e coragem deve ter sido a receita para, aos 76 anos de idade, o organista desposar alegremente a jovem Mathilde, 40 anos mais nova que ele.

De Charles-Marie Widor encontra-se muito no Youtube. É recorrente a fabulosa e universalmente célebre Toccata do movimento final da V Sinfonia. A mim também me agrada muito este andante sostenuto da Sinfonia Gótica.:

2007-12-08

Karlheinz Stockhausen (1928 - 2007)


Terminou abruptamente a carreira de um dos mais controversos músicos e intelectuais do século XX. Com Sartre podemos dizer que levou ao extremo a sua condenação à liberdade. E agora realizou-se a sua essência histórica. É, porque foi, um ser humano de excepção. Curvemo-nos, por isso, perante a sua grandeza: uma enorme estátua de memória lançará a sombra imensa sobre este século XXI. Este é sempre o destino (que palavra feia!) das grandes sínteses. A Stockhausen devemos (deve o atarracado século XXI) a grande síntese espiritual da música do mundo. Que se saiba crescer à luz intensa de tal sombra espiritual!



2007-11-29

Gaetano Donizetti (1797 -1848)

Há precisamente 210 anos, em Bérgamo, Itália, nasceu o compositor Gaetano Donizetti. Prodígio no seu tempo e admirado no nosso, deixou um legado rico e diversificado de que ressalta essa história tocante de amor e loucura que é Lucia di Lammermoor.
Loucura e tragédia que, segundo rezam as crónicas, o acompanharam ao longo de uma vida relativamente breve. Loucura que o atingiria também a ele próprio, supõe-se que pela doença da época, a sífilis, que teria contraído e o levaria à morte.

Da Lucia fica este espantoso Sextet com a Sutherland à cabeça de um grupo de vozes fabulosas. Ouçamo-las com respeito...como tributo ao compositor de Bérgamo.


2007-11-16

Do Prazer

«O prazer é uma experiência dos sentidos, não difere do puro olhar ou do puro sabor com que um belo fruto nos enche a língua; é uma experiência grande e infindável que nos é dada, um saber do mundo, a plenitude e o esplendor de todo o saber. E que a tenhamos não é mau; o que é mau é quase todos usarem mal e desperdiçarem essa experiência e tomarem-na como excitante nos momentos fatigados da sua vida e como distracção, em vez de concentração, para os pontos altos.
(...)
Pode lembrar-se de que toda a beleza nos animais e nas plantas é uma forma silenciosa e permanente de amor e desejo e pode ver o animal como vê as plantas, unindo-se e multiplicando-se e crescendo pacientemente, docilmente, não do prazer físico, não do sofrimento físico, curvando-se às necessidades que são maiores do que o prazer e a dor e mais fortes do que a vontade e a resistência. Oh, pudesse o homem receber este segredo, de que a terra está cheia até às mínimas coisas, com mais humildade e guardá-lo gravemente e sentir como ele pesa tanto em vez de o tomar com leviandade! Pudesse ele respeitar a sua fecundidade que é só uma, pareça ela espiritual ou física; pois também a criação espiritual arranca da criação física, faz um com ela e é só como que uma repetição subtil, mais arrebatada e eterna do prazer do corpo.»


Rainer Maria Rilke.


Este excerto retirei-o de Cartas a um Jovem Poeta, um encontro recente. Aquilo que me parece uma excelente tradução de Vasco Graça Moura prendeu-me como poucas vezes me vejo. Um conjunto de missivas que são, além de tudo mais, uma lição de bom senso e um tratado de Estética. O excerto é de 16 de Julho de 1903. Por esta altura Gustav Mahler escrevera já a sua 5ª sinfonia (1901-1902). Este adagietto da 5ª, pela batuta de Zubin Mehta, adequa-se na plenitude ao espírito do texto. Parece-me. Eu pelo menos quero fruí-lo assim!

2007-11-10

Bicentenários

Há precisamente 200 anos, o espírito europeu tentou entrar em Portugal. Chegou rapidamente a Lisboa vindo de Paris. Só viaja depressa quem não encontra obstáculos. Do norte 'acudiram', por mar, aos "pobres portugueses".
Com a fenda orográfica da Columbeira de permeio, insultaram-se ingleses e franceses, espanhóis e portugueses. Chegaram a vias de facto na Roliça. E muitos jovens derramaram no solo antiquíssimo o sangue vivo da sua juventude. Há ainda sinais, dores e cicatrizes mais ou menos definidas nas almas dos peninsulares. O que seria de nós sem a 'mãozinha benfazeja' de Your Majesty? A mesma História demorou pouco a responder. A História é isto. Ficam as memórias do reencaminhamento do ser. A dúvida acerca de «o que seria se...?» revela-se sempre sem sentido. Foi. E só o que foi é.


Outros bicentenários (ou os mesmos...) se assinalam sem polémica. O que é realmente grande não alimenta dúvidas. Ludwig van Beethoven (1770 - 1827) compôs, há precisamente 200 anos (naquela época heróica, portanto), a MÚSICA da EUROPA. Compôs a Quinta e a Sexta Sinfonias e esta Abertura maravilhosamente conduzida por Carlos Kleiber.


Daquele rio imenso de inspiração Humana, esta Abertura Coriolano é, sem dúvida, um persistente fio dourado, uma abertura para a expansão do ser novo. Uma abertura como o Sol.


Mas...


(Para a visão catastrófica, desencantada, talvez mesmo irritada com Sua Majestade, ouça-se aqui. Bem alto!)


2007-11-09

Página 161

Obviamente, devo um pedido de desculpas ao João e ao Paulo.
Só posso redimir-me dirigindo-lhes o convite...com um abraço!

Para não parar a corrente ...da «161».

A simpatia da Moura leva-a a estas coisas. É por isso que gostamos dela. Por isso e por muito mais, claro.
O desafio é curioso. Só posso imaginar o que se pretende como produto final. Mas é um desafio e os enigmas estimulam-me.
Pego nas regras (que enunciaria para os meus convidados) e sigo:
- Tomei o livro à mão (o mais à mão, sem escolher!). Saiu-me....
Logos
de António Lopes e Paulo Ruas
(Um manual escolar do décimo ano que alguém deixou na minha mesa de trabalho).
- Abri o "manual" na página 161.
- Procurei a 5ª frase (um enunciado complexo que exprime uma proposição política).
- Transcrevi, ipsis litteris,...
«É claro que, normalmente, os partidários da desobediência civil não pretendem distorcer o sistema democrático mas sim alertar as consciências votantes
- E, para que tudo continuasse, convidaria outros cinco bloggers amigos.
Quis fazê-lo e reparei que todos os meus amigos já participaram neste desafio. Da situação ficou-me um ligeiríssimo desconforto e a certeza de que tenho poucos mas muito bons.
A 'minha' frase surpreendeu-me. As dos amigos também.
Cumprimentos!

2007-10-31

Dietrich (Diderich) Buxtehude (1637 - 1707)

Infelizmente não foi possível estar presente na Capela da Bemposta. Teria sido muito interessante. No entanto fomos contaminados pela febre de Buxtehude, mesmo à distância.
Há uma linha bem vincada que vai do compositor alemão (que sempre se reclamou dinamarquês, pelo que se diz) até Bach...e continua. Persistente. Como já o fora Bach quando insistiu, correndo alguns riscos assinaláveis, em fazer a longa viagem até Lübeck para se encontrar com o famoso compositor da cidade. Isto Ilustra bem a admiração do genial Johann Sebastian pelo organista de Marienkirche.
As Kantaten que Ton Koopman tão bem soube trazer ao público e a música para órgão, aqui soberbamente interpretada por K-B Kropf, no Arp Schnitger de Neuenfelde, revelam a certeza da intuição de Bach ao sublinhar o valor desta música profunda e envolvente.

Assim, tem sido uma semana a cantata e órgão. E como já nos foi dito, é um privilégio!


2007-10-24

Luciano Berio

"A Música é um instrumento para possuir as coisas. Como a grande poesia que possui a realidade através das palavras. Pode alguém ser muito culto em outros ramos da Arte e da Ciência, a Música, porém, só pode ser criada no contexto do saber musical. Assim, o músico é aquele que, através da Música, busca uma significação da realidade."
Luciano Berio; Entrevista, 1988.




Luciano Berio nasceu em Oneglia, Itália, a 24 de Outubro de 1925. Dele se diz que para além de compositor genial para voz, era senhor de uma visão teórica da Música, expressão de uma forma de vida com muito sentido. Na Música como na vida foi inovador bem humorado e experimentador de uma criatividade audaz. Faleceu numa Primavera: a de 2003. O Broto gosta sobretudo de assinalar hierofanias. Louvemos....

2007-10-22

Ferenc (Franz) Liszt

Não tem havido tempo para reflectir sobre música, para navegar na poesia ou, sequer, para visitar os blogues. Os dos amigos que sempre me trazem novas do mundo real, desse mundo que respira e vive debaixo do manto (nada diáfano) desta realidade forjada em que mergulhamos no dia-a-dia. Tem havido (porque isso é imperativo) tempo para ouvir música. Se bem que não com a atenção necessária. Mas não posso deixar passar em claro o momento Liszt. Hoje faria qualquer coisa como 196 anos. Bela idade, a caminho do eterno. A eternidade que Horowitz (outro demiurgo do paraíso) nos traz como consolação. Marquemos a data com o perfume do sublime.

2007-10-18

António Ramos Rosa


Estou em atraso. Ramos Rosa aniversariou ontem, 17 de Outubro. Agradeço à Moura a centelha que acendeu as emoções. A celebrar o aniversário de alguém, que seja de alguém assim ilustre. Vezes sem conta, ilustre. Nunca o meu! Que da luz recebi pouco. Ilustrado e ilustrador é o poeta. O incansável poeta da tocha acesa: o zeteta. Não podemos adiar um nome. Voltemos hoje a aspirar o seu perfume intemporal.


«Da grande página aberta do teu corpo
sai um sol verde
um olhar nu no silêncio de metal
Uma nódoa no teu peito de água clara


Pela janela vejo a pequenina mão
de um insecto escuro
percorrer a madeira do momento intacto

meus braços agitam-te como uma bandeira em brasa
ó favos de sol


Da grande página aberta
sai a água de um chão vermelho e doce
saiem os lábios de laranja beijo a beijo
o grande sismo do silêncio
em que soberba cai vencida a flor
»

António Ramos Rosa, Nos Seus Olhos de Silêncio (1970)


É um prazer antigo. Uma inquietação. Ler Ramos Rosa e ouvir os nocturnos de John Field (1782 - 1837). Não propriamento o nº 5, mas....

2007-10-16

Poemat Fibicha

Porque a melancolia
tomou hoje conta de mim
por nada
por todo o nada
que amanhã aflorará
no incansável fluir
e hoje me pesa já
como presença....


«Poemat Fibicha» cantado em 1937 (gravado em vinil, naturalmente) por Marian Demar. A obra de apresentação do checo Zdenek Fibich (1850 - 1900).

2007-10-15

Fechtschule

Este é um postal com destinatária. Sabemos do 'entusiasmo bélico' da nossa excelente Xantipa. Já que o 'marido' prefere a Agora tem ela que se esforçar...e fazer pela vida. Mas para ela este fim de semana foi de festa no Oeste. Pelo que se lê. A melhor celebração vem pela música e pela 'dança'. Sobre isto devemos estar de acordo. Seleccionei então um belo exemplo que, não sei, mas presumo que lhe agradará. Jean- Baptiste Lully (1632 - 1687) e Johann-Heinrich Schmelzer (1623 - 1680) brindam-nos com esta «Fechtschule». Direitinha à Xantipa. Com amizade e admiração!

2007-10-14

Esta Semana....


Iniciemos a semana com a suavidade inspirada da música medieval (Ars Nova). Vou ouvir com atenção esta obra extraordinária que dá pelo nome de «Le Jugement du Roi de Navarre» da autoria de Guillaume Machaut (1300-1377) e assinada desta forma bastante curiosa:«Je, Guillaumes dessus nommez, Qui de Machau sui seurnommez». Obra dedicada a um jovem protector do músico, o Dauphin Charles de Navarre, que no momento menos adequado se aliou aos ingleses, naquela época conturbada da história francesa de meados do século XIV.
Duzentos anos mais tarde, mais coisa menos coisa, o flamengo Pieter Brueghel (c.1525 – 1569), dá um retrato da azáfama da vida do Renascimento: Um tempo de mudança.
Encontrei no Youtube esta preciosidade. Bela combinação!!


A música que acompanha Brueghel chama-se Chanson Baladée e é, claro, de Guillaume Machaut.

2007-10-11

Vagão «j»



«A charanga, derreada, vai marcando do coreto o compasso à marcha que os homens batem em baixo, no terreiro. Botas de bezerro, bota cardada, camisa branca, rosto vermelho estoirando de carrascão.
- É agora!
No sarrabulho do baile, arrancavam nuvens de poeira que engrossam o ar. E na curva macia do céu, estrelas ensonadas lucilam de olhos piscos.
Chega-lhe agora. Prà direita. É mais uma! E virou!
(...)

Um balão malhado de cores numa ascensão repousada ia subindo ao céu. Então os homens deixaram de escavar o terreiro.
- Vai arder! Vai arder!
Antes que ardesse, o mestre da charanga atacou, duro, uma música de triunfo. Olhos parados no ar. (Olha a boa da melancia!) Ia arder com certeza. Aquele asno do Carranca...
Sobre a escadaria da capela, Manuel bate com a bota o compasso da música.
- Tão não danças?
A calça repuxada descobria a meia de algodão e os atilhos. Tinha a jaqueta aberta, a camisa desabotoada e um crânio de ferro.
- Não danças?
- Prò raio....
(...)
O mestre da charanga limpava o suor da testa ao lenço tabaqueiro e os músicos desabotoados - pff!, que calor...- iam passando a cântara de vinho, de uns para os outros, para molharem a goela encortiçada. Céu tranquilo em curva doce, abarcando o mundo. Os homens do terreiro esperavam mais música porque a noite acabaria depressa e eles não estavam ali senão para se amassarem bem na dança
.
»


Vergílio Ferreira; Vagão «j»



A Charanga do Samouco

2007-10-08

Violoncelo

(Madrigal para a Inventada)

Vou inventar uma flor
para pôr
no teu cabelo.

Uma flor com asas de lume
donde, em vez de perfume,
saiam sons de violoncelo.

E eu possa dizer à Terra:
«Sim. Bendito seja o teu ventre entre as mulheres.
Mas basta de malmequeres!»

[José Gomes Ferreira; Poesia III (1961)]


No mesmo ano (1961), Mstislav Rostropovich (o senhor 'violoncelo') (1927 -2007) executa, com a London Symphony Orchestra, o 'Concerto for Violoncello & Orchestra, op.107 ' de Dmitri Shostakovich (1906 - 1975). Felizes coincidências....



2007-10-07

Salão Nobre do Conservatório Nacional

E porque não alguma solidariedade cultural? O Salão Nobre do Conservatório Nacional está neste estado. Assine aqui a petição. Nunca se sabe......

2007-10-05

Livros que mudaram a minha vida (a corrente....)

Quis responder ao desafio lançado pelo Tónica Dominante. Com isso fui colocado perante a procissão dos meus fantasmas, dos que me empurram para o fim. Daqueles que entrevi aponto a dedo alguns. Muitos outros se camuflaram nas pardas sombras da memória. Esses virão depois. Eis os primeiros:

- José Gomes Ferreira - Poesia III,IV e V;
- Vergílio Ferreira - Vagão J;
- Manuel da Fonseca - Seara de Vento;
- Hermann Hesse - Siddhartha;
- Platão - Apologia de Sócrates;
- António Lobo Antunes - Manual dos Inquisidores;
- José Saramago - In Nomine Dei;
- Jorge Luis Borges - Ficciones;
- Cervantes - Novelas ejemplares;
- Thomas Mann - Doutor Fausto;
- Marguerite Yourcenar - L'Oeuvre au Noir;
- Jean-Paul Sartre - Les Mains Sales;
- Franz Kafka - A Metamorfose;
- Stig Dagerman - Outono Alemão;
- Martin Heidegger - Holzwege.


e mais....muitos mais....

2007-10-04

Óbidos - Temporada de Cravo


Está à porta a 5ª edição da «Temporada de Cravo de Óbidos». Este ano sob os auspícios da celebração dos 250 anos da morte do compositor napolitano Domenico Scarlatti. Uma excelente iniciativa numa vila que se afirma cada vez mais no panorama cultural deste pobre país e, ainda por cima, aqui tão perto de tudo. Tanto quanto sei não vai haver Spinet. Mas garanto que vale a pena. Consulte-se aqui o flyer.


2007-10-03

Louis Aragon

A 3 de Outubro de 1897, talvez numa velha pensão à beira do Sena, nasce Louis Aragon. A mãe, jovem proprietária, não o assumiu imediatamente. O pai nunca soube bem quem fora. Talvez um velho político da época. A França livre 'levou-o em ombros'.
Poeta, também o mundo tardou em assumi-lo. A sua irreverência sentida tornou-se bandeira na ressaca do grande morticínio. Foi voz de peso na revolução cultural da Europa e a História canta o seu nome como ele cantou os difíceis nomes do «l'Affiche Rouge».
Porque "não há amor feliz"...

Il n'y a pas d'amour Heureux

«Rien n'est jamais acquis à l'homme. Ni sa force
Ni sa faiblesse ni son cœur. Et quand il croit
Ouvrir ses bras son ombre est celle d'une croix
Et quand il croit serrer son bonheur il le broie
Sa vie est un étrange et douloureux divorce

Il n'y a pas d'amour heureux

Sa vie elle ressemble à ces soldats sans armes
Qu'on avait habillés pour un autre destin
A quoi peut leur servir de ce lever matin
Eux qu'on retrouve au soir désarmés incertains
Dites ces mots ma vie et retenez vos larmes

Il n'y a pas d'amour heureux

Mon bel amour mon cher amour ma déchirure
Je te porte dans moi comme un oiseau blessé
Et ceux-là sans savoir nous regardent passer
Répétant après moi les mots que j'ai tressés
Et qui pour tes grands yeux tout aussitôt moururent

Il n'y a pas d'amour heureux

Le temps d'apprendre à vivre il est déjà trop tard
Que pleurent dans la nuit nos cœurs à l'unisson
Ce qu'il faut de malheur pour la moindre chanson
Ce qu'il faut de regrets pour payer un frisson
Ce qu'il faut de sanglots pour un air de guitare

Il n'y a pas d'amour heureux

Il n'y a pas d'amour qui ne soit à douleur
Il n'y a pas d'amour dont on ne soit meurtri
Il n'y a pas d'amour dont on ne soit flétri
Et pas plus que de toi l'amour de la patrie
Il n'y a pas d'amour qui ne vive de pleurs

Il n'y a pas d'amour heureux
Mais c'est notre amour à tous deux.»


Louis Aragon, 1946


Georges Brassens:

2007-10-01

Vladimir Horowitz (Kiev, 1 de Outubro de 1903)

Faria hoje 104 anos. Recordemos então o pianista do século. Nascido em Kiev, Ucrânia, é filho da Revolução de Outubro, sem a qual, dizia, nunca teria sido um grande pianista. Abandonou-a aos 25 anos, quando a própria revolução já definhava. Rendeu-se ao "American way of life" e tornou-se cidadão do mundo. Regressou à Rússia já perto do fim. Um regresso emocionado e conturbado.
No Éden dos pianistas ocupará, sem sombra de dúvida, um dos lugares de privilégio.


2007-09-30

Paixões...de Outono

"Ach, mein Sinn,
Wo willt du endlich hin,
Wo soll ich mich erquicken?
Bleib ich hier,
Oder wünsch ich mir
Berg und Hügel auf den Rücken?
Bei der Welt ist gar kein Rat,
Und im Herzen
Stehn die Schmerzen
Meiner Missetat,
Weil der Knecht den Herrn verleugnet hat
."
.
.
«Oh, sentido da minh'alma,
Onde irei eu, afinal?
Onde poderei eu confortar-te?
Permaneço aqui
ou retiro para as colinas e montanhas
lá atrás?
Neste mundo não há resgate
e no coração mora-me a dor
da minha falta,
pois o discípulo renegou o seu mestre.»*
*Tradução (muito) livre.


Johann Sebastian Bach; Johannes-Passion. Aria



Masaaki Suzuki & Gerd Türk

2007-09-28

Take the A Train

Numa Europa aparentemente a braços com uma questão de imigração vão surgindo espíritos lúcidos. Poucos mas bons. Parece estar fora do âmbito deste blogue referir-se a certas questões. Apenas parece. Nem a música está alheada do mundo nem este se harmoniza sem o contributo decisivo e pacífico da música. Claro!...e do sorriso.
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«Dois passageiros num compartimento de comboio. Não sabemos nada do seu passado, origem ou destino. Instalaram-se como se estivessem em casa, ocupando mesinhas, cabides, cubículos para bagagem. (...) Abre-se a porta e entram dois novos viajantes. A sua chegada não é bem-vinda. Há uma evidente má-vontade por terem de se chegar, retirar as coisas dos lugares vagos e partilhar o espaço disponível. Neste caso os primeiros passageiros comportam-se de forma particularmente solidária, apesar de não se conhecerem. Confrontam, como grupo, os recém-chegados. é o seu território que está a ser disputado. Qualquer um que apareça é visto como intruso. Consideram-se nativos e reivindicam a totalidade do espaço. Esta atitude não se pode explicar de forma racional, parece estar profundamente enraizada.
Proporciona contudo, raramente, conflitos declarados. Isto acontece porque os passageiros estão sujeitos a um sistema de regras que não depende deles. O seu instinto territorial é reprimido, por um lado pelo código institucional dos caminhos-de-ferro, e por outro pelas normas consuetudinárias de comportamento, como as da cortesia. Assim, trocam-se apenas olhares e murmuram-se entre dentes pedidos de desculpa. Os novos passageiros são tolerados. Habituam-se a eles. No entanto, embora em menor escala, permanecem estigmatizados.
Este exemplo tão simples não está livre de aspectos absurdos. O compartimento do comboio é uma morada transitória, um lugar que apenas serve à mudança. A flutuação é a sua característica. O passageiro é a negação do sedentário. Ele trocou um território real por um virtual. No entanto, defende o seu fugaz alojamento com raiva silenciosa.»
Hans Magnus Enzensberger; 'A Grande Migração' in Perspectivas da Guerra Civil.


2007-09-21

BWV 1065



Já ouvi tanta música de Bach que me parecia que nada me escapara desse universo extraordinário e vastíssimo. Puro engano! A música é também um mundo de eternas e maravilhosas surpresas. E quando pensávamos que mais nenhuma genialidade nos poderia surpreender....ficamos «de queixo à banda» com um autêntico festival ...de puro génio. Benditos os pianos e as cordas! Benditas as mãos....




2007-09-18

Benedetto Marcello (Veneza, 1686 - 1739)



Não sou muito de insinuar sensibilidades. Gosto do que gosto e fico feliz se alguém gostar comigo. O gosto insinuado soa-me sempre a pedagogia de 'gosto duvidoso'. E a pedantismo balofo. O prazer que se partilha não sobrepõe estatutos. No plano estético há apresentações. Só isso. E ninguém tem o direito de 'conduzir ninguém pela mão'. De um certo ponto de vista não me parece justo.

Logo, isto é apenas uma apresentação. Que me agrada muitíssimo. Merece ser ouvido pelo menos uma vez. Não para gostar. Isso é pessoal. Mas apenas para conhecer.

2007-09-15

Cidades



Ávila...

del rey – de los leales – de los caballeros:







Cidade renascentista da paixão e do êxtase:




De Juan de la Cruz (1542 - 1591):

CANCIONES DEL ALMA... [ II ]


¡Oh llama de amor viva,

que tiernamente hieres

de mi alma en el más profundo centro!

pues ya no eres esquiva,

acaba ya si quieres;

rompe la tela de este dulce encuentro.


¡Oh cauterio suave!

¡Oh regalada llaga!

¡Oh mano blanda! ¡Oh toque delicado,

que a vida eterna sabe

y toda deuda paga!,

matando muerte en vida la has trocado.


¡Oh lámparas de fuego

en cuyos resplandores

las profundas cavernas del sentido

que estaba oscuro y ciego

con extraños primores

calor y luz dan junto a su querido!

¡Cuán manso y amoroso

recuerdas en mi seno

donde secretamente solo moras

y en tu aspirar sabroso

de bien y gloria lleno

cuán delicadamente me enamoras!



De Tereza de Jesus (1515 - 1582):

Mi Amado para mí


Ya toda me entregué y di

Y de tal suerte he trocado

Que mi Amado para mi

Y yo soy para mi Amado.


Cuando el dulce Cazador

Me tiró y dejó herida

En los brazos del amor

Mi alma quedó rendida,

Y cobrando nueva vida

De tal manera he trocado

Que mi Amado para mí

Y yo soy para mi Amado.


Hirióme con una flecha

Enherbolada de amor

Y mi alma quedó hecha

Una con su Criador;

Ya yo no quiero otro amor,

Pues a mi Dios me he entregado,

Y mi Amado para mí

Y yo soy para mi Amado.








Da serenidade e do profundo recolhimento místico do

Requiem

de Tomás luis de Victoria (c.1548 - 1611).

Um Bálsamo!!

2007-09-13

«...de las tinieblas a la luz»



Gustav Mahler (1860 - 1911). A propósito de nada. E de tudo. A segunda metade do século XIX explodiu numa confiança imbatível. A razão poliédrica revela-se então, como nunca: Ciência, Arte, Política, Economia....(no fundo, Filosofia)...e a Música, claro! Movimentos intelectuais, sobretudo estéticos, fervilham na Europa, centro do mundo. Viver sem ir a Paris não é viver, é passar pela vida.
A pintura e a música, mas não só, insinuam-se como supremas afirmações da razão sensível e da modernidade. Filósofos geniais, pintores brilhantes e músicos eternos germinam e pululam na glória desta era civilizacional. O futuro foi o que foi. Sabemo-lo hoje. Provavelmente por isso, ou por causa disso e do seu contrário. Mas são contas de outro rosário....
Como lemos e ouvimos aqui (onde o brilho de dois génios, Mahler e Sinopoli (1946 -2001), nos arrebata) a Sinfonia nº 1 em Ré maior, tradicionalmente conhecida por «Titan», encerra-se carregada de simbolismo que é o de uma época inquieta e que se assume como de transição. «De las tinieblas a la luz», diz-nos o articulista. Concordamos!

2007-09-06

E Lucevan le Stelle


Caminhou na Terra, gloriosamente, entre os Mortais
E em glória regressou ao Silêncio.

2007-09-03

Cecilia Bartoli


Cecilia Bartoli é fantástica. Há adjectivos mais indicados para caracterizar uma voz brilhante e única. Sei que há. Mas eu só quero dizer isto: «Cecilia Bartoli é fantástica»!


Toda a tecitura da voz acorda fantasmas e borda fantasias. Define novos contornos, pinta céus não imagináveis, funde formas, concilia movimentos.


Cecilia traz a paz embebida na voz. Reconhecer-se-ia nela a fundação de ser. Porque é do fundo, do nada que devem ser, que a voz dela abre o que se torna. Definitivo. Um «bel foco» que jamais se extinguirá. Uma chama que se acende em cada um.

Cecilia Bartoli é a paz. Ouçamos como concilia os inconciliáveis Benedetto Marcello (1686-1739) e Antonio Vivaldi (1678-1841).

2007-08-31

Heinrich I. F. Biber




…E para quem sublinha sempre o carácter sorumbático da música erudita na sua forma ‘sonata’, eis um representativo desmentido de Heinrich Ignaz Franz Biber (1644 – 1705), ilustre compositor, pensador musical e finíssimo violinista do séc. XVII.

Porque a música é, naturalmente, o fino fio dourado da vida que passa, ela tem, da vida, tudo. Até o humor em doses adequadas. Da vida real, claro!

2007-08-29

"Passarinhos"

Marco Uccellini (1603 ou 1610 – 1680). O italiano Uccellini, no coração do barroco amou e desenvolveu a sonata, vincando bem, nas que compôs e que nos chegaram, a melodia em vaga sobre os quatro andamentos, na forma mais apropriada ao tempo, ao seu tempo histórico.
O agrupamento The Arcadian Academy de Nicholas McGegan gravou “La Bergamasca”, em 1993, para a harmonia mundi. Parece-me que foi distribuído entre nós em 2004. Mais do que um cd, é uma lição e uma iniciação ao deleite da sonata.
De Uccellini pouco sabemos. Até mesmo a data do seu nascimento é insegura, o que em pleno século XVII já não seria tão comum. Dizem-nos que se preocupou com as notas mais agudas e que nos seus escritos sublinhou bem a sua importância musical. Disseram também algumas más-línguas que isso se devia ao seu próprio nome (em português «passarinhos»), que lhe terá feito prestar atenção aos maviosos chilreios canoros. Graçolas!!!
No YouTube encontrámos esta amostra. É fraca, realmente....mas é o que temos à disposição. O melhor mesmo é obter o cd.


2007-08-16

Marin Marais

Marin Marais (1656 - 1728) é um vulto repleto. Tanta música, tanta vida, tanta dedicação. A pungente França de XVII – XVIII, terra de tanta Europa, gerou esta força da natureza para que refulgisse mais e mais a vitalidade cultural e política desta época dourada. Na Paris eterna, entre luzes e sombras, ressoam novos timbres desatados por mãos divinas. Sons que insuflam e animam palácios e encantam poderosos. Combinam alegria e requinte nas festas modernas, guiando os pequenos voos das jovens cortesãs afogueadas. Sons que se estendem como luz nos corredores de oiro e deslizam em diálogo pelas superfícies frias dos espelhos, desafiando os fugazes brilhos dos lustres suspensos de tectos fantásticos. Sons subtis que alegram corações e restabelecem príncipes febris.
Enchem ainda o coração do músico que materializa na sua vastíssima prole a inspiração de um mundo de pujante fantasia e novidade.
Marin Marais extingue-se em Paris a 15 de Agosto de 1728. A sua música límpida corre ainda por aí a restabelecer os corações.


2007-08-12

Torga



«A princípio, realmente, ninguém o viera perturbar naquele refúgio murado e amplo, onde as notas, como ondas numa praia imensa, se estendiam pesadas e vagarosas. Uma tarde, porém, a sombra esguia da moça transpôs imperceptivelmente a grande porta. Viu-a atravessar sem ruído o transepto, e ir ajoelhar-se diante do altar da Virgem. Sem saber porquê aflorou-lhe aos dedos o Stabat Mater. O som ergueu-se, encheu o silêncio, e o tempo deixou de ter medida. Quando ela se levantou e saiu, sem erguer sequer os olhos para o coro, era noite fechada. Desencantado, desceu também dos píncaros do inefável, onde pairava, e pôs-se a caminhar no duro chão da realidade. Na rua, pouco depois, a tropeçar nas saliências do empedrado, a vida pesava-lhe nos ombros muitos quilos a mais.


No dia seguinte, à mesma hora, repetiu-se a aparição. Cuidou que o coração lhe saltava do peito. E a emoção que sentira no dia anterior nasceu de novo e animou-lhe as mãos magras e nervosas. Tocou. Não o Stabat Mater, angustiado. Desta vez foi um Salmo, brando como uma carícia a um filho. Uma ternura que a si próprio se dava, não sabia porque dor futura. E aquele afago fazia-lhe bem.»


Do conto Música do livro Rua de Miguel Torga (1907 - 1995). Uma simples homenagem ao 'rude sensível' no dia do seu centenário.




Stabat Mater - Giovanni Pergolesi (1710 - 1736)

2007-08-02

Antonio de Cabezón




Cabezón (1510 - 1566), o músico cego da Imperatriz, “abrilhantou” a bela serenidade da rainha portuguesa. Isabel de Portugal levou a Carlos V e à sua corte imperial, o gosto requintado da música. Manteve junto de si cerca de meia centena de músicos. Atendendo ao registo imortal que nos deixou Tiziano, não lhes faltaria a fonte da inspiração: A beleza da Imperatriz que fascinou o grande senhor da Europa do século XVI, bem como todos os seus súbditos. De tal modo que, após espreitar o seu cadáver, já em avançado estado de decomposição, Francisco de Borja, o Duque de Gandia, foi levado a mudar radicalmente a sua vida. Com isso tornou-se santo. Sophia, a Imperatriz dos poetas, celebra finamente a meditação do Duque:

Nunca mais
A tua face será pura, limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.

E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre.
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser.
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência.
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.



Sophia de Mello Breyner Andersen; Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal.



A Harpa Aoyama é uma 'fantasia' moderna...mas Cabezón soa bem e a Imperatriz teria gostado destas «diferencias» requintadas.

2007-07-14

Modernidade, Liberdade, Música (Le 14 Juillet)

...Deixámos para hoje essa referência inultrapassável a Tchaikovsky. Porque sim! Nesta «1812 Overture» está muito do essencial do espírito da modernidade. Porque apetece celebrar todas as Bastilhas....porque nos nossos sonhos mais fecundos visitamos sempre os possíveis não realizados. Porque é aí que respiram os «subterrâneos»... Porque Música, Liberdade e Sonho são companheiros eternos. Porque...



2007-07-13

Modernidade, Liberdade, Música

No seu excelente livro Tudo o que é Sólido se Dissolve no Ar (editado em Portugal pelas Edições 70, com tradução de Ana Tello), Marshall Berman aproveita uma frase do Manifesto do Partido Comunista, de K.Marx, para dar título a uma notável análise do espírito da modernidade. No IV capítulo penetra na estrutura da sociedade russa do século XIX e faz um percurso pela importância histórica e social da Avenida Nevski, de São Petersburgo, não só para o desenvolvimento da Rússia, numa época crucial da sua história mas, também, para a compreensão da eclosão da plenitude do espírito da modernidade, ali como em toda a Europa Ocidental. Os anos retratados são anos dramáticos para os povos europeus, para a Rússia mas também para a Itália. As convulsões da história social russa do século XIX pulsarão naturalmente na música dos compositores da época. Glinka e o Grupo dos Cinco (Balakirev, Cui, Mussorgsky, Rimsky–Korsakov e Borodin), entre outros, deixaram bem fixa na pauta a modernidade dramática da alma russa. Mas o ponto de Berman aqui é outro. Ao confrontar-se com um texto de Dostoievski (Notas do Subterrâneo), e com os dramas existenciais do herói do texto, refere, citando em parte:

«Sentia-me triunfante e cantava árias italianas» Aí, como em grande parte da grande ópera italiana – que coincide, lembre-se, com as lutas da Itália pela autodeterminação – o triunfo é político e pessoal. Ao lutar, à luz do dia, pela sua liberdade e dignidade, ao lutar não só contra o oficial mas também contra a desconfiança e o ódio que nutre por si próprio, o Homem do Subterrâneo venceu.” (p.246)

De facto, também em Itália se lutava então pela liberdade e pela dignidade de um povo inteiro. O reconhecimento da liberdade ou a luta por ela é um traço profundo da modernidade. Os compositores italianos souberam, como ninguém, deixar marcada na música a emoção e a força desse traço Moderno em confronto com as velhas estruturas sociais opressoras. Verdi deixou-nos o trecho que, muito provavelmente o heróico Homem do Subterrâneo cantou no seu pequeno, mas decisivo, momento de libertação:

EBREI
Va', pensiero, sull'ale dorate;
va', ti posa sui clivi, sui colli,
ove olezzano tepide e molli
l'aure dolci del suolo natal!
Del Giordano le rive saluta,
di Sionne le torri atterrate...
Oh mia patria sì bella e perduta!
Oh membranza sì cara e fatal!
Arpa d'or dei fatidici vati,
perché muta dal salice pendi?
Le memorie nel petto raccendi,
ci favella del tempo che fu!
O simile di Sòlima ai fati
traggi un suono di crudo lamento,
o t'ispiri il Signore un concento
che ne infonda al patire virtù!


2007-07-05

Heidegger, Schumann e o "Poema único"








Numa leitura despreocupada encontrei na obra de Carl Dahlaus, Musikästhetick (Estética Musical na tradução portuguesa de Artur Morão para as "Edições 70") uma referência a Schumann que me chamou a atenção. O excerto diz o seguinte:


«1. A estética de uma arte é a das outras; só o material é diferente.



O aforismo de Schumann, uma sentença que incitou Grillparzer e Eduard Hanslick à oposição, é apoiado pela representação entusiástica da arte "única" que se dispersa em artes diversas, tal como a luz nas cores. E o momento que faz da arte arte e a separa de um ofício inferior, da "prosa" de todos os dias, recebeu de Schumann, baseado na estética de Jean Paul, o nome de "poesia" (pg. 14 da tradução portuguesa).»


A leitura deste pequeno trecho reenviou-me para outras leituras que sublinham, de todo, uma ideia semelhante. Num pequeno texto de 1953 à volta da poesia de Georg Trakl, Heidegger escrevia: «Todo o grande poeta poetiza só a partir de um único Poema». E mais adiante - «O lugar do Poema encobre, como manancial da onda movente, a essência velada daquilo que, do ponto de vista metafísico - estético, pode, à partida, aparecer como ritmo». E mais: «Uma vez que o Poema único permanece no âmbito do não dito, só podemos dilucidar o seu lugar procurando indicá-lo a partir do falado nos poemas particulares. (...) Os poemas particulares brilham e vibram só a partir do lugar do Poema único.» (M. Heidegger; A Fala no Poema, uma dilucidação da poesia de Georg Trakl; versão pessaol.)


Num outro texto, ao reflectir sobre uma afirmação do poeta Hölderlin, «...poeticamente habita o homem....», diz-nos o filósofo: «O homem não habita só enquanto instala a sua morada na terra sob o céu, enquanto que, como agricultor, cuida do que lhe cresce e simultaneamente levanta edifícios. O homem só é capaz deste construir se constrói já no sentido do medir que poetiza. Propriamente o construir acontece enquanto há poetas, aqueles que tomam a medida da arquitectónica, da armação (Gestell) do habitar». (Heidegger, Vorträge und Aufsätze, cap. 8, versão pessoal.)



Tomemos então o aforismo de Schumann (a estética de uma arte é a das outras) e substituamos «Poema» por «Música». Isto se nos for difícil aceitar a afirmação de que aquilo que faz da arte arte e a eleva a uma forma específica e fundante do habitar humano, (eu diria: o que faz de qualquer arte, mesmo a musical, arte) é a «poesia». Sobre a fecundidade deste nome reflectiremos noutras ocasiões.

2007-07-02

Wilhelm Friedemann Bach


Wilhelm F. Bach (22/11/1710 - 1/7/1784) foi o segundo filho do grande Johan Sebastian Bach e o primeiro da sua mulher Maria-Barbara. O jovem Wilhelm Friedemann foi sempre o mais próximo e o preferido do pai. Para além da Música, estudou Direito, Filosofia e Matemática e parecia ter um futuro promissor. A Música, naturalmente, aprendeu-a do pai e revela, em algumas passagens do que deixou escrito, uma aderência quase absoluta a trechos da escrita do progenitor. Wilhelm, apesar de talentoso, parece ter-se tornado sombrio e pouco regrado na sua vida social. Rapidamente caiu em desgraça na Berlim do século XVIII. Chamou a si situações difíceis que lhe trouxeram uma velhice decadente e uma morte miserável.


Herdou algo do pai: a sua música mostra talento e originalidade, marcas familiares que parece partilhar com outros elementos da brilhante prole Bach.


O cd gravado por Barthold Kuijken e Marc Hantai dos seus «Six Duets for Two Flutes» exibe bem a medida do talento do compositor mas também a permanente sujeição à matriz paterna. Herança pesada é a deixada por tal pai! No entanto, no contexto da passagem do Barroco Musical para o Classicismo é, sem dúvida, um compositor a ter em conta e a ouvir com atenção.

2007-06-27

Georg Philipp Telemann






Alguém, de que não obtive a referência exacta, disse um dia acerca de Georg Philipp Telemann (1681 - 1767): «Telemann é um daqueles raros génios que consegue reunir a mestria técnica à inventividade, ao puro bom gosto musical e, acima de tudo, uma capacidade sintétca dos gostos musicais da época, o que o torna um dos maiores compositores da sua época». Parece que com Bach (J.S.), e Händel, o nome de Telemann significava «a música». Nos 240 anos da sua morte recordamos com muito agrado o seu «puro bom gosto musical», felizmente bem apresentado por excelentes executantes do nosso tempo. Flores para o génio!

2007-06-22

Goethe e a Música



Obviamente o título é um exagero. O que se segue não exprime a relação desse enorme vulto da cultura com a música. É um texto literário. Transcrevo-a pelo humor. Goethe era um "tipo com sentido de humor". O texto é gracioso. A tradução é horrível. Darei a referência bibliográfica....para que se cuidem dela. Serviços destes a nossa Língua dispensa. Deleitemo-nos apenas com a graça substancial:



«Senti-me de repente aterrorizado ao ouvir falar em casamento, porque o temia quase mais do que temia a música que, até então, me parecera a coisa mais odiosa deste mundo. Costumava dizer que os músicos vivem pelo menos na ilusão de estarem todos unidos e de tocarem em plena harmonia, porque, depois de passarem um tempo suficiente a afinar os seus instrumentos, dando-nos cabo dos ouvidos com inúmeras dissonâncias, acreditam piamente que acabaram por acertar e que todos os instrumentos estão em plena sintonia uns com os outros. Mergulhado numa felicidade infinita, o próprio dirigente imagina que agora tudo está finalmente bem, inundando contudo os nossos ouvidos com sons insuportáveis. Em contrapartida, nem sequer isto é verdade no matrimónio, porque embora se trate de um dueto e se pudesse pensar que duas vozes ou mesmo dois instrumentos soariam mais ou menos em harmonia, isto é, de facto, extremamente raro. Quando o homem dá o tom, a mulher entoa logo uma nota acima e o homem volta a subir o tom. Os sons moderados passam a sons mais fortes e assim sucessivamente, até que, finalmente, nem sequer os instrumentos de sopro conseguem acompanhar a melodia. Se já não gosto de música harmónica, ninguém me poderá levar a mal o facto de eu odiar a música dissonante.»

Goethe; A Nova Melusina. Tradução [de que é preciso fugir...!] de A. Mosch. Colares Ediora

2007-06-16

Edvard H. Grieg (15 June 1843 – 4 September 1907)




O jovem Edvard da Noruega, empurrado para Leipzig, encontra aí a música de Schumann. Prende-se a ela e aos princípios românticos. Rikard Nordraak, um amigo nacionalista, abriu-lhe as portas do nacionalismo. O floclore da pátria, a "febre" nacional e o ideal romântico estruturaram a maravilhosa síntese artística de Grieg. O escritor e dramaturgo Ibsen, seu compatriota, publica em 1867 o texto dramático que, salvo melhor opinião, concentra em si aqueles traços, o Peer Gynt. Aqui, na forma de suites românticas, Grieg transforma o drama numa viagem maravilhosa pela alma norueguesa.

Celebrar-se-ia ontem mais um aniversário do compositor nórdico. Este ano, a 4 de Setembro, completar-se-ão 100 anos após a data da sua morte. Um século que não deveria ser esquecido. Talvez possamos voltar a ser levados ao universo de Edvard Grieg. Basta que tal centenário seja assinalado como merece. Nós merecemos a sua música e ele merece que o ouçamos e que comunguemos com ele a melancólica brisa fresca dos fiordes que se desprende suavemente da sua música.

2007-06-11

Carlos Seixas





Carlos Seixas (11 de Junho de 1704 – 25 de Agosto de 1742)

Celebrar-se-ia hoje o 303º aniversário de Carlos Seixas (José António, de nome próprio). Seixas é uma daquelas figuras frequentes na paupérrima história da cultura portuguesa. Não, pela cultura, que essa é rica e nada deve ou teme perante as mais diversificadas formas de afirmação de qualquer nação, pela particularidade dos seus valores, dos seus sentires e do seu afirmar-se entre as demais gentes do globo. Também não pelo povo que é ávido de afirmação e capaz de se mostrar condignamente e bem alto por meios e manifestações tão fortes e ricas como quaisquer outras da velha Europa e do mundo. Pobre apenas por não reconhecer, afinal, quem tão bem a defende, a reforça, reaviva e engrandece. ‘Pobre' aqui é um lamento, não um juízo de facto.

Filho do Mestre Organista da Sé de Coimbra (Francisco Vaz), cedo o jovem José António revelou o génio de quem é tocado pelo indicador dourado com que os deuses assinalam os melhores. Ainda jovem coadjuva, e depois substitui, a “eminência parda” do Barroco em Portugal e na Europa rendida aos pés e à música divina de Domenico Scarlatti, então Mestre da Capela Real da Coroa Portuguesa.

Seixas introduz “cultura portuguesa” no Barroco. Não poderemos falar, com propriedade, num “barroco português”, com respeito à música, mas de um movimento cultural barroco, definitivamente enriquecido pela genialidade do excelente cravista e compositor (não só de cravo viveu o artista!) que foi Carlos Seixas. Leveza, suavidade, experimentalismo são predicados que em Seixas vêm iluminar a fonte do barroco italiano, de que é bebedor. A sua música de capela parece extraída do sol que invade as cúpulas dos templos lusos e se deposita docemente, em notas de luz serena, na partitura do mestre cravista português.

Porque hoje faria anos e quem se revela grande e luminoso nos labirintos da cultura, ecoa até das ruínas e dos tormentos, e flui eternamente nos espíritos, como um alento de nacionalidade, aqui se assinala respeitosamente o facto. Com profundo respeito e reconhecimento da dívida imensa. Hoje, um dia depois do numismático delírio belicista e patrioteiro.


2007-06-08

Schumann



















Robert de Zwickau. Nado aí no final da primavera, a 8 de Junho de 1810. Fadado para romance. Direito à arte, à música, à paixão. A música, paixão antiga, revela Clara Wieck, ainda menina. A ansiedade paraliza o génio da acção. Revela o génio imortal da composição.
Robert e Clara: Clássico romance do amor e da loucura.
Ouça-se o amor de Robert por Clara porque «os sons estão para além das palavras»

2007-06-07

Abertura

Tudo sereno. As gatas dormem a sono solto. Uma no tampo da mesa (diria que é pouco confortável....mas é sempre surpreendente a lógica dos felinos!), a outra, a preta de olhos dourados, derrama-se como uma nódoa ocasional no conforto da almofada já gasta. Tudo está sereno. Händel faz-se ouvir pela arte de Gardiner. O Messias, o que ( apesar de todos, dos que não acreditam nunca e dos que acreditam sempre....malgré!...) aí está, abre a sessão do sonho. Pedra e pedra e pedrinha. Brotam da diferença e saltam como gatas azuis nos telhados uniformes da tarde brilhante. As palavras. Hesitantes e ágeis. Abre-se o portal e fixam-se as pedras na travessia do ser, semeadas no ritmo atrás das botas torcidas. Um soprano (extraordinário!) abre e mantém aberto o portal por onde brotarão, semi-nuas, estas lajes da travessia, paulatinas e persistentes. Cá vão!!!