2007-07-05

Heidegger, Schumann e o "Poema único"








Numa leitura despreocupada encontrei na obra de Carl Dahlaus, Musikästhetick (Estética Musical na tradução portuguesa de Artur Morão para as "Edições 70") uma referência a Schumann que me chamou a atenção. O excerto diz o seguinte:


«1. A estética de uma arte é a das outras; só o material é diferente.



O aforismo de Schumann, uma sentença que incitou Grillparzer e Eduard Hanslick à oposição, é apoiado pela representação entusiástica da arte "única" que se dispersa em artes diversas, tal como a luz nas cores. E o momento que faz da arte arte e a separa de um ofício inferior, da "prosa" de todos os dias, recebeu de Schumann, baseado na estética de Jean Paul, o nome de "poesia" (pg. 14 da tradução portuguesa).»


A leitura deste pequeno trecho reenviou-me para outras leituras que sublinham, de todo, uma ideia semelhante. Num pequeno texto de 1953 à volta da poesia de Georg Trakl, Heidegger escrevia: «Todo o grande poeta poetiza só a partir de um único Poema». E mais adiante - «O lugar do Poema encobre, como manancial da onda movente, a essência velada daquilo que, do ponto de vista metafísico - estético, pode, à partida, aparecer como ritmo». E mais: «Uma vez que o Poema único permanece no âmbito do não dito, só podemos dilucidar o seu lugar procurando indicá-lo a partir do falado nos poemas particulares. (...) Os poemas particulares brilham e vibram só a partir do lugar do Poema único.» (M. Heidegger; A Fala no Poema, uma dilucidação da poesia de Georg Trakl; versão pessaol.)


Num outro texto, ao reflectir sobre uma afirmação do poeta Hölderlin, «...poeticamente habita o homem....», diz-nos o filósofo: «O homem não habita só enquanto instala a sua morada na terra sob o céu, enquanto que, como agricultor, cuida do que lhe cresce e simultaneamente levanta edifícios. O homem só é capaz deste construir se constrói já no sentido do medir que poetiza. Propriamente o construir acontece enquanto há poetas, aqueles que tomam a medida da arquitectónica, da armação (Gestell) do habitar». (Heidegger, Vorträge und Aufsätze, cap. 8, versão pessoal.)



Tomemos então o aforismo de Schumann (a estética de uma arte é a das outras) e substituamos «Poema» por «Música». Isto se nos for difícil aceitar a afirmação de que aquilo que faz da arte arte e a eleva a uma forma específica e fundante do habitar humano, (eu diria: o que faz de qualquer arte, mesmo a musical, arte) é a «poesia». Sobre a fecundidade deste nome reflectiremos noutras ocasiões.

Sem comentários: