2007-12-22

Obra-prima

«A obra-prima é uma sinfonia tocada nos nossos melhores sentimentos. Ao toque mágico do belo as cordas mágicas do nosso ser despertam, vibramos e alegramo-nos em resposta à sua chamada. A mente fala à mente. Escutamos o que não foi dito, fitamos o que não foi visto. (…) Memórias há muito esquecidas regressam a nós com novo significado. Esperanças sufocadas pelo medo, desejos que não ousamos reconhecer, avançam em nova glória. A nossa mente é a tela onde os artistas colocam a sua cor; os seus pigmentos são as nossas emoções; o seu «chiaroscuro» a luz da alegria, a sombra da tristeza. A obra-prima é de nós próprios tal como nós somos da obra-prima.
(…)
Para compreender uma obra-prima tendes de rebaixar-vos perante ela e aguardar com respiração contida a menor das suas elocuções

Kakuzo Okakura; O Livro do Chá




«Coro:

Muchas cosas hay portentosas, pero ninguna tan portentosa como el hombre; él, que ayudado por el noto tempestuoso llega hasta el otro extreme de la espumosa mar, atravesándola a pesar de las olas que rugen, descomunales; él que fatiga la sublimísima divina tierra, inconsumible, inagotable, con el ir y venir del arado, año tras año, recorriéndola con sus mulas.`Con sus trampas captura a la tribu de los pájaros incapaces de pensar y al pueblo de los animales salvajes y a los peces que viven en el mar, en las mallas de sus trenzadas redes, el ingenioso hombre que con su ingenio domina al salvaje animal montaraz; capaz de uncir con un yugo que su cuello por ambos lados sujete al caballo de poblada crin y al toro también infatigable de la sierra; y la palabra por si mismo ha aprendido y el pensamiento, rápido como el viento, y el carácter que regula la vida en sociedad, y a huir de la intemperie desapacible bajo los dardos de la nieve y de la lluvia: recursos tiene para todo, y, sin recursos, en nada se aventura hacia el futuro; solo la muerte no ha conseguido evitar, pero si se ha agenciado formas de eludir las enfermedades inevitables. Referente a la sabia inventiva, ha logrado conocimientos técnicos más allá de lo esperable y a veces los encamina hacia el mal, otras veces hacia el bien. Si cumple los usos locales y la justicia por divinos juramentos confirmada, a la cima llega de la ciudadanía; si, atrevido, del crimen hace su compañía, sin ciudad queda: ni se siente en mi mesa ni tenga pensamientos iguales a los míos, quien tal haga.»
Sófocles; Antígona

2007-12-21

Ne me quitte pas!...

(...) E é preciso humedecer os lábios com pérolas de chuva vindas de terras onde não chove. Só o que é belo, verdadeiramente belo, permanece.

2007-12-15

Dissoluto Absolvido

"Don Giovanni:
- Espanha, Turquia, França, Alemanha, Itália, tudo somado dá duas mil e sessenta e cinco mulheres...Quem delas terá sido a primeira? Como se chamava? Seria das louras? Seria das morenas? Era alta? Ou era baixa? Não consigo recordar-me. Depois de ter duas mil e sessenta e cinco mulheres deitadas, quem seria capaz de se lembrar da primeira? Tantas, tão poucas, demasiadas. Como poderá saber-se? A orgulhosa Dona Ana teria neste livro o número dois mil e sessenta e seis, a ingénua Zerlina seria a dois mil e sessenta e sete mas as ingratas não me deram tempo, resistiram, gritaram por socorro, obrigaram-me a fugir, a dar confusas e ridículas explicações. Antigamente era mais rápido na conquista, mais veloz no triunfo, mais conclusivo na retirada. E ainda por cima tive de matar o idiota do comendador. Don Giovanni está a fazer-se velho.
(Batem à porta com violência)
Don Giovanni:
- Quem chama? Leporello! Leporello! Onde te meteste tu alma condenada? Vai ver quem está a bater à porta! (...) Ah, tinha-me esquecido de que o mandei às compras... (Batem de novo com mais força) (...) Quem será o grosseiro, o estúpido, o mal-educado? (Agarra num bastão e vai abrir.) Espera aí que já te ensino!
Comendador (entrando):
- Aqui estou.
Don Giovanni:
- Isso vejo eu, mas custa-me a crer ser verdade o que os meus olhos mostram. Uma estátua andante é um prodígio que nunca mais se repetiu desde que o homem foi feito de barro."
José Saramago; Don Giovanni ou O dissoluto absolvido.

Tanta homenagem! Tantos fantasmas!
Mozart, Saramago, Freud, Levine, 'Don Giovanni', 'Dona Elvira', Comendadores.... Nunca mais acabam os nomes, as referências, as metáforas. Uma torrente esmagadora. E o que terá tudo isto a ver com os homens? (Pausa para respirar...fundo...e segurar no peito o coração...com ambas as mãos.)

2007-12-10

Charles-Marie Widor (1844-1937)

Charles-Marie Widor (1844 – 1937) nasceu em Lyon, França, no seio de uma família com tradição na construção de órgãos de igreja. Um amigo da família, Aristide Cavaillé-Coll, nome célebre da construção destes instrumentos, descobriu o talento do jovem Charles-Marie e impulsionou a sua formação. Não foi tempo perdido. Com 26 anos, Widor sucede ‘provisoriamente durante 64 anos’ a Lefébrue-Wely, como organista da L'église Saint-Sulpice de Paris (célebre, hoje em dia, por via do celebérrimo romance de Dan Brown), local onde fora instalado um fabuloso órgão Cavaillé-Coll. Aí desenvolve o talento de uma vida rica e circunspecta. A sacralidade que respira a música para órgão é a expressão adequada à vida e à personalidade deste francês de carácter aparentemente fechado.
Widor substitui, mais tarde, César Franck, no Conservatoire de Paris, como responsável pelo ensino do instrumento de eleição. Revela aí aos seus discípulos, entre os quais o desafortunado Jehan Alain, a força espantosa da sua arte musical. Com ele aprenderão ainda hoje todos os que quiserem seguir a via da música. Já ouvi esta ideia a grandes músicos de Jazz, por exemplo. Para Widor a ‘improvisação’ não seria uma questão de talento mas uma contínua aprendizagem que exige tanto trabalho como a simples execução.
O compositor francês ficou célebre pelos seus trabalhos para órgão. A minúcia e o rigor são os traços determinantes. Tal como o foram do seu ensino. A obra, no entanto, estende-se por todas as áreas da composição, do piano à voz e até mesmo ao teatro musical.
Também eram célebres no seu tempo os acompanhamentos musicais das missas-recital de Saint-Suplice. Em Paris, estas missas eram procuradas pelas pessoas mais cultas como expressão do bom gosto. Improvisação, bom gosto e coragem deve ter sido a receita para, aos 76 anos de idade, o organista desposar alegremente a jovem Mathilde, 40 anos mais nova que ele.

De Charles-Marie Widor encontra-se muito no Youtube. É recorrente a fabulosa e universalmente célebre Toccata do movimento final da V Sinfonia. A mim também me agrada muito este andante sostenuto da Sinfonia Gótica.:

2007-12-08

Karlheinz Stockhausen (1928 - 2007)


Terminou abruptamente a carreira de um dos mais controversos músicos e intelectuais do século XX. Com Sartre podemos dizer que levou ao extremo a sua condenação à liberdade. E agora realizou-se a sua essência histórica. É, porque foi, um ser humano de excepção. Curvemo-nos, por isso, perante a sua grandeza: uma enorme estátua de memória lançará a sombra imensa sobre este século XXI. Este é sempre o destino (que palavra feia!) das grandes sínteses. A Stockhausen devemos (deve o atarracado século XXI) a grande síntese espiritual da música do mundo. Que se saiba crescer à luz intensa de tal sombra espiritual!